contos em pílulas — III
Alguns contos incrivelmente curtos escritos em momentos de ócio
Escrito em um N900, enquanto eu perdia mais de meia hora da minha vida esperando ser atendido em um lugar qualquer. Foi o único celular com teclado que usei que conseguia digitar por mais de 2 minutos sem sentir câimbra nos polegares, pena que não se fazem mais celulares como antigamente.
Saudosismo devidamente expressado, vamos ao que interessa.
a single shot
Essa era a sua chance. Sua última chance. Caso acertasse, poria fim a esta situação inteira, salvaria diversas vidas, poderia ganhar diversas condecorações e ainda sairia como o heroi da história, pela primeira vez em toda a sua vida.
Exceto que não seria apenas a primeira, mas também a última, e ele não seria um heroi, mas um mártir.
Esta guerra está perdida. Escondido nas sombras, com o que restou dos seus companheiros, os pensamentos aceleram e uma ideia começa a ganhar força. Ele poderia incapacitar permanentemente o acampamento inimigo, mas a qual custo? Uma missão suicida era a única alternativa, se esgueirar durante a noite e plantar explosivos no depósito de armas. A confusão seria tamanha que um ataque surpresa destruiria o acampamento de homens cansados e mal nutridos, não muito diferentes dele mesmo, e garantiria a passagem pela fronteira, a apenas alguns quilômetros naquela direção, objetivo que poderia ser cumprido antes do amanhecer. Quanto a ele próprio, estaria no meio de um monte de soldados apenas esperando para puxar o gatilho na direção de alguém com um uniforme ligeiramente diferente. E não demoraria até que isso acontecesse, teria sorte se tivesse uma morte rápida.
Mesmo com uma grande chance de sucesso, seu plano enfrentara a resistência ferrenha dos seus compatriotas. “Não vale a pena se arriscar por algo que tem pouquíssimas chances de dar certo”, dizia um deles. De fato, caso o plano não funcionasse, ele já tinha pleno conhecimento que seus inimigos não costumam fazer prisioneiros de guerra.
O que fazer? Ele teria que agir duplamente escondido — dos inimigos e de seus compatriotas. Só poderia contar consigo mesmo para planejar e executar o próprio plano à revelia de todos. Precisava pensar rápido porque o dia se aproximava e então já seria tarde demais.
Quase todos estão no chão, alguns dormindo e outros exaustos. Poucos estão de pé, vigiando. E ele, passando ao largo de todos sem alertar uma única alma da sua presença. Nunca o treinamento de guerra na selva tinha sido tão útil, ele era praticamente uma sombra passando de uma árvore a outra. Carregava a mochila secretamente preparada, com explosivos suficientes para derrubar um pequeno prédio, e ia em direção ao seu objetivo. No acampamento inimigo uma situação semelhante ao seu próprio acampamento, com poucos de pé, e ele facilmente chega até a larga tenda abrigando vários tipos de munição e granadas. Joga a mochila lá dentro, vai até a distância máxima que o transmissor funciona, algumas dezenas de metros, se põe atrás de uma árvore, e fecha os olhos. Em seguida, fecha o mecanismo que carregava na mão direita.
Era claro como o próprio sol, e ruidoso como um vulcão. Os companheiros levantam-se repentinamente sem saber o que fazer naquela confusão mas em poucos segundos tudo fica claro. O plano suicida tinha sido executado. Nada mais poderia ser feito em relação ao suposto mártir, senão reunir o que restava de forças e partir com tudo pra cima do acampamento completamente desordenado. Em questão de minutos, os poucos soldados agindo de vigias foram facilmente alvejados e os restantes rendidos facilmente ou derrubados como moscas. Enfim, uma vitória, uma pequena vitória no meio daquela guerra. E praticamente todos conseguiram ultrapassar as trincheiras e cruzar a fronteira pesadamente defendida pelos seus aliados.
Praticamente. Só um soldado não cruzou a fronteira, e foi dado como desaparecido. Ao invés de condecorações, uma condenação à revelia por insubordinação grave e deserção, crimes que o conduziriam à corte marcial caso estivesse presente. Fuzilamento. Ao invés de heroi ou mártir, insubordinado e desertor. Ele havia se tornado um pária, rejeitado no seu próprio país e caçado como um animal pelo país inimigo.
O clarão da explosão mostrou a ele um pouco da selva além, onde ele podia observar um riacho e um pequeno bote amarrado às margens. Desamarrou o bote e seguiu em frente, ciente de todos os crimes que havia cometido aos olhos dos seus compatriotas. Sem ter pra onde ir, passou dias na mata, utilizando tudo o que aprendeu no curso de sobrevivência na selva para manter-se vivo. Quando estava já à beira do colapso físico e mental, chegou a uma pequena vila, isolada e alheia aos acontecimentos dos dias anteriores, onde foi recebido simplesmente como um homem perdido na mata e nada mais. Foi dado a ele um lugar para dormir e algo para comer, e depois de muitos anos ele foi tratado não como subordinado ou inimigo, mas como igual. E decidiu, naquele momento, iniciar uma nova vida, naquele lugar distante onde o horror da guerra não havia ainda chegado.
Vários anos depois ele era apenas um nome num arquivo morto do tribunal militar do seu país, e o inimigo havia desistido de procurá-lo. Mas sabe-se que ele viveu um por um bom tempo depois disso e que talvez ele até tenha formado uma família, segundo relatos dos habitantes da antiga vila — hoje cidade — onde ele passou o resto dos seus dias. E finalmente ele foi reconhecido como um heroi de guerra devido a quantidade de vidas que ajudou a salvar. Apenas com o tempo ele teve o seu esforço reconhecido, assim como muitos.
No breve momento em que sua mão fechava o mecanismo, só havia um pensamento na sua cabeça: “Essa é a minha única chance de salvar, ao invés de destruir”.