contos em pílulas — I

Alguns contos incrivelmente curtos escritos em momentos de ócio

Escrevi esse negócio aí embaixo deve fazer uns 10 anos, provavelmente num momento onde eu não tinha mais nada pra fazer, e postei em um antigo blog que já foi engolido pelas metafóricas areias do tempo. Mas relendo aqui até que não ficou tão ruim assim, então vamos lá mais uma vez:


Eutanásia

José havia, no final das contas e das tentativas, das frustrações e dos desencontros, finalmente desistido. Fazia tudo meticulosamente, como um serial killer maquinando como executar sua próxima vítima: escolheu o dia, a maneira, o que escrever na carta. Procurou uma fórmula de um veneno que agisse rapidamente e surrupiou os simples ingredientes do laboratório de química da escola onde fazia bicos. Arrumou o apartamento, preparou uma dose única em um copo com água e pôs ao lado da cama, sentou-se nela e começou a redigir a carta. Com caneta e papel — achava que máquinas eletrônicas não seriam capazes de passar efetivamente sequer metade da mensagem demonstrada em algumas linhas de texto mal escrito.

“Esta é apenas uma mensagem aos que ficam. Não irei me estender muito nem escrever mais do que o necessário, e nem vou ficar aqui me lamentando e reclamando da vida, etc, etc, etc. Apenas registrarei a mensagem e nada mais.”

Um começo pretensioso, pensou, pois não queria escrever as mesmas lamentações que sempre escrevem nesse tipo de carta.

“Há momentos onde nada mais resta senão desistir, por diversas razões. Seja porque o esforço sobre-humano não vale mais a pena, seja porque já não faz mais sentido, seja porque perdeu a graça, seja porque simplesmente está fora da nossa capacidade… diversas razões. No final de tudo, sempre, sempre, sobra a esmagadora constatação de que nada mais resta a ser feito.”

Ficou pensando agora sobre o que o havia levado a desistir. Seria a dificuldade de melhorar de vida, de finalmente resolver terminar os estudos? Seria o fato de não conseguir se manter em emprego algum por conta do seu humor instável e da sua personalidade difícil? Ou seria porque a única namorada que conseguiu resolveu dar-lhe um pé definitivamente porque ele não tinha rumo algum na vida? Nada disso parecia razão suficiente. Talvez fosse tudo junto, ou talvez houvesse algo a mais.

“Mas antes de desistir, faça uma auto-análise e você vai descobrir que, com toda a certeza, o problema é você mesmo. Não adianta inventar bodes expiatórios, projetar a frustração em alguém/alguma coisa, a culpa é sua, totalmente sua. Se você acha que ainda não é hora de desistir, mexa-se e faça algo útil.”

Provavelmente o motivo era esse: cansaço. Não era a faculdade pela metade ou a namorada que o havia mandado tomar bem no meio, nada disso, ele estava cansado, muito cansado, com vontade de mandar tudo e todos à merda. Como não poderia fazer isso, resolveu mandar a si mesmo à merda.

“Começar a fazer algo por si mesmo sem esperar nada de ninguém é a primeira fissão atômica em uma reação em cadeia. E quando você perceber que, por mais que tudo dê errado e que não pareça ter jeito, tudo isso foi resultado das suas próprias ações, pode ser que as coisas mudem. Quando você toma as rédeas da situação e assume total controle e responsabilidade sobre a sua vida, acredite, você enxergará o mundo de um jeito diferente. Você manda, você faz, você se fode, você aprende, você consegue. É tudo uma questão de ponto de vista.”

Como ensina a nossa boa e velha língua portuguesa, o verbo “cansar” exige um objeto. O problema era não conseguir identificar esse objeto. Cansado sim, mas cansado de que? Fez uma rápida busca mental mas não conseguiu chegar a nada. Mas de que diabos isso ia adiantar agora?

“É isso que eu estou prestes a fazer. Eu vou tomar o controle, vou tomar as rédeas. Vou fazer o que deveria ter feito há muito tempo mas um medo irracional me impedia. O controle está nas minhas mãos para eu fazer o que eu bem entender. E agora, senhoras e senhores, esta será a minha cartada final. Aproveitem a vida ou ela se aproveitará de vocês. Ou então desistam de uma vez e pronto.

Mas eu não. Não vou desistir.”


Há dois dias que a ex-namorada tenta ligar, sem sucesso. Assim que chegou de viagem, arrependida do que tinha feito, entrou no carro e voou para o apartamento. Tocou a campainha uma, duas, três vezes, pegou o celular e ligou novamente apenas para ouvir o telefone tocando lá dentro, voltou e perguntou do porteiro por ele, que não passava há dias na portaria. O desespero começa a tomar conta, e ela pede com lágrimas nos olhos para o porteiro chamar a polícia.

Porta abaixo, apartamento vazio e um tanto arrumado, ela até estranhou. Dispara até o quarto e encontra apenas um cheiro estranho, uma cama desarrumada, um pedaço de papel e um copo quebrado no chão. Já com lágrimas nos olhos, lê a primeira frase e cai de joelhos ao chão.

Um dos policiais corre para ampará-la e ao sentir o cheiro imediatamente reconhece o veneno — chama de imediato o oficial responsável, que confirma se tratar de uma substância conhecida e altamente tóxica. O oficial, depois de vasculhar a casa e perceber que não há qualquer sinal de roubo ou arrombamento, violência ou qualquer coisa do tipo, e pela presença do odor característico do veneno e do copo quebrado, rabisca no seu bloquinho “provável suicídio”.

E porque provável? Simples: não havia corpo. Por mais que a casa fosse vasculhada, pessoas interrogadas e buscas feitas, ele não foi encontrado, nada, nenhum vestígio, o celular e documentos encontrados intactos, e algum dinheiro guardado. A janela estava aberta, algo estranho, mas não tão notável.

O caso então passou de “provável suicídio” para “desaparecimento”, e depois do prazo legal ele foi considerado oficialmente morto. Ninguém nunca soube do seu paradeiro.


Permitam-me corrigir a última frase do último parágrafo: Ninguém nunca soube do seu paradeiro, exceto uma pessoa.

Essa pessoa foi para um país estrangeiro, adotou um novo nome e recomeçou a sua história. No último momento, essa pessoa recusou-se a desistir e resolveu tomar ela mesma o controle da sua vida. Essa mesma pessoa que, um dia, se chamou José.

O copo fora atirado longe no derradeiro momento em que o vapor que saía dele atingiu as narinas de José, sem que seu conteúdo tivesse chance de cumprir o seu propósito.

José, de fato, morreu. Mas em seu lugar, uma nova pessoa surgiu, com novos valores e uma nova mentalidade, uma nova maneira de encarar as coisas e de ver o mundo. E essa nova pessoa, definitivamente, não está disposta a desistir.

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